[C.M.] O Caminho do Corpo (Jovens Samurais — Fisiculturistas do Japão), introdução de Yukio Mishima

Adonai Braga
6 min readAug 10, 2021

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O texto a seguir é a introdução que Yukio Mishima escreveu para o livro Taidō (Caminho do Corpo, em japonês, renomeado em 1967 pelos tradutores americanos como “Young Samurai — Bodybuilders of Japan”), um livro que possui uma coletânea de fotos tiradas em 1965 de fisiculturistas japoneses pelo fotógrafo e bodybuilder Tamotsu Yato, com a introdução de Mishima e comentários finais de Hitoshi Tamari. É nesta coletânea em que encontramos as famosas fotos onde Mishima está vestindo apenas um fundoshi (tanga de origem japonesa), empunhando uma espada ao centro de um dojô. Fiz a tradução diretamente do inglês (feita por M. Weatherby e Paul T. Konya) da introdução de Yukio Mishima.

“Tamotsu Yato nos entrega o que com certeza é a primeira coleção de fotografias de fisiculturistas japoneses já publicada. E ainda há uma significativa dissertação final feita por Hitoshi Tamari, este que primeiro me guiou no caminho do fisiculturismo 11 anos atrás. É uma honra e motivo de emoção estar escrevendo o prefácio de tamanho livro.

No passado, desejei vãmente que houvesse um fotógrafo específico para o fisiculturismo no Japão. Leonardo da Vinci nunca poderia ter encontrado a técnica genuína para reviver o humanismo na arte renascentista sem o conhecimento prévio de anatomia, da mesma forma, é impossível elevar fotografias do corpo ao nível de fotografia artística sem o conhecimento preciso e prático do corpo humano. Finalmente, com o surgimento deste livro, esse meu grande desejo fora respondido. Isto porque o senhor Yato realiza treinos voltados ao fisiculturismo, ele conhece a quintessência do músculo, está completamente consciente de sua sutil fisiologia, e mais, por ser um fotógrafo profissional, também conhece as infinitas nuances das formas criadas pela luz e pela sombra… e por isso, pela primeira vez no Japão, o presente ensaio fotográfico é brilhante em revelar toda a força e beleza da simetria, todo esplendor, toda melancolia e toda a poesia do corpo masculino.

Após uma breve reflexão, entende-se que o fisiculturismo representa uma importação recente de um elemento que notavelmente estava em falta na cultura japonesa. Nós não temos nenhuma tradição de fortificação do corpo. Nossos antepassados acreditavam que a força física poderia facilmente ser suplantada pela crença no sobrenatural, enfatizando o mental em detrimento do corpóreo. Consequentemente, nenhum reconhecimento foi dado ao valor cultural da carne, do corpo nu. Apesar da opinião de muitos ocidentais de que nós somos um povo de moral frágil, nós somos talvez os primeiros vitorianos, os mais puros puritanos, e não é apenas um acidente histórico termos ficado sob influência ocidental quando relatamos que, durante a Era Meiji, nós colocamos roupas de baixo em estátuas nuas — roupas de baixo, não folhas de figueira. Não foram os missionários do Ocidente que nos vestiram com os seus Mother Hubbards¹, em nossos corações nós já os vestíamos.

A liberação do corpo no Japão do pós-guerra se manifestou principalmente no aspecto do sexo; em seu outro aspecto, cujo efeito deve ter caído sobre nossa moral histórica, nunca veio realmente a público, nunca alcançou nossa consciência, nunca recebeu uma atenção genuína. Exceto por esse aspecto sexual, o mesmo desprezo obscuro, antigo, confuciano pela carne ainda está cravado no coração de várias pessoas. Mesmo no Japão atual, quando a ocidentalização aparente parece ter permeado o Japão, a sabedoria da antiga Grécia — aquela que reconhecia o homem supremo sendo aquele que possui o equilíbrio do espírito e do corpo debaixo do Sol, aquele que valoriza o corpo junto do espírito, e vê isto de forma bela, nobre e, ao mesmo tempo, imanente e transcendente — esta sabedoria foi completamente esquecida. E desta forma, de maneira impensada, estamos caminhando diretamente para a fragmentação, para a funcionalização e para a especialização, ou seja, caminhando em direção à desumanização do ser humano, coisa que é traço inevitável da industrialização.

(Todavia, pode parecer que eu estou apenas irrigando meu próprio arrozal. Eu não estou pregando que o fisiculturismo é o evangelho da salvação mundial ou a cura para todos os males)

Apesar desta melancólica situação descrita acima, nos últimos mais de 10 anos, houve um grupo de jovens no Japão que, de maneira privada, suando em silêncio, e com halteres como as únicas companhias, desenvolveram definidos e robustos corpos que nenhum japonês antigo pudera sequer ver em sonhos. Este livro é um eloquente testemunho do sucesso destes jovens. Assim como o conhecido ensaísta Michio Takeyama escreveu, é incrível o quão fidedigno os corpos dos jovens japoneses alocam-se aos padrões da Grécia antiga, e me lembro ainda por cima de que Lafcadio Hearn chamou os japoneses de “os gregos do Oriente”.

Uma característica dos japoneses que é constantemente observada é como eles arremedam de maneira fácil e fiel algo de uma cultura estrangeira, ao ponto de ser uma imitação perfeita, e logo depois a assimilam totalmente, o que era apenas um capricho estrangeiro, à cultura japonesa. A popularidade do fisiculturismo no Japão pós-Guerra é dado a influência americana, e podemos voltar ainda mais e sentir o reavivamento da cultura pagã do Império Romano, cujo território espalhou-se sem limites, com luz e prosperidade. Mas o fisiculturismo japonês como é hoje parece ter se tornado algo mais do que simplesmente esconder a falta de uma cultura voltada ao corpo, parece mais possuir as sementes que farão renascer um antigo sentimento japonês de importância espiritual com o corpo e unirá conceitos que, até o momento em que estamos, pareciam estar separados como óleo e água.

Originalmente, como lemos no Hagakure, o grande clássico da sabedoria samurai do século XVII, as famosas normas de conduta pelas quais o samurai vivia não eram apenas formas vazias, mas eram intimamente conectadas com a sua consciência e seu código de ética. Portanto, o samurai era levado à corar suas bochechas ao atender os desejos de seu mestre, não para uma vã demonstração, mas para honrar seu mestre mostrando uma face saudável ao invés de um rosto pálido gerado por uma noite de farra. Outro exemplo da formalidade samuraica é acender incensos no seu elmo antes de ir à batalha, ou cuidadosamente se maquiar antes de cometer harakiri: até mesmo na morte a aparência é importante. Atualmente, todas estas normas de conduta foram retiradas do samurai e, ao mesmo tempo, o japonês moderno descobre que ele perdeu o firmamento de sua moralidade. Nos nossos corações, por muito tempo nutridos no Caminho do Samurai, surgiu um estranho paradoxo: sem etiqueta nós não temos moralidade.

Então o que deveria surgir em um tempo como esse? Se não devemos andar nus, sem consciência, sem moralidade, qual deve ser o nosso padrão? O que deve substituir aquilo que nós perdemos? Não poderia ser o poderoso e robusto corpo masculino? Eu digo isto pois não possuímos nem ideologia nem conceitos que podem substituir a base sólida oferecida pelo corpo. Então, em tal época, não deveria o japonês finalmente garantir o valor cultural tão merecido ao corpo, ao corpo aprazível, ao corpo que transborda com a força?

Finalmente chegamos ao ponto de que este livro também contém fotos minhas como fisiculturista. Entre outras coisas, eu pratico um grande número de esportes tradicionais japoneses, e as vezes eu escrevo um romance. Na arquitetura japonesa existe algo chamado “pilar de cabeça para baixo”. Por conta da superstição de que casas extremamente bem construídas chamam a atenção de espíritos malignos, este pilar é colocado de cabeça para baixo para dar um ar de imperfeição. Eu suspeito que as minhas fotografias que foram incluídas estão servindo como um “pilar de cabeça para baixo” neste livro que o senhor Yato construiu tão perfeitamente. Tendo nós nos protegido dos espíritos malignos, com certeza este livro, com a benção de muitas pessoas, aproveitará uma merecida festa de inauguração da casa².

[1] : Mishima aqui refere-se a um tipo de vestido do século XIX, que levado pelos missionários cristãos às ilhas da Polinésia para levar “modéstia” ao povo nativo.

[2] : O termo em inglês é “housewarming”, algo como “aquecer a casa”, e é um termo usado para designar festas realizadas para inaugurar uma casa recém comprada.

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